Meus olhos já estão fechados, mas os tapei também com minhas mãos. Não posso mais ouvi-la, mas sei que estava aqui. Sinto seu cheiro, se é que tem cheiro…
Vá embora. Por favor, se puder me ouvir, vá embora. Vá embora!
Não sei há quanto tempo estou aqui, sentado no chão, protegendo-me de nada.
Acho que agora ela está mais perto, tenho vontade de chorar. Ela sempre me dá vontade de chorar. Julieta… Por que? Você não precisa fazer isso, minha querida. Se puder me ouvir, vá embora.
Já deve ser tarde. O que diabos estou fazendo aqui? Chega. Esteja ela lá ou não, eu vou para a minha cama. Temo que esteja… Mas o corpo dói, e não serei intimidado dentro da minha casa. E intimidado por Julieta! Que besteira.
Eu me envergonho em admitir: não parei em lugar algum antes de chegar na cama. Não fui ao banheiro, ou comi, ou tomei água, por medo de Julieta… Eu sei que você está aí, eu sei! Fecho os olhos, e meus pensamentos se acalmam, já tenho sono… dormirei logo… Sem Julieta.
Na madrugada, acordo para ir ao banheiro. Ledo engano, “dormirei sem Julieta”. Acordo, e seus olhos grandes e cinzas me fitam, como se estivessem ali, me fitando, desde o momento que fechei os meus. Vá embora, eu sei que você sabe que eu quero que você vá. Então para que serve essa teimosia, Julieta? Me deixe!
Não consigo mais dormir. Vou ser obrigado a conversar com você, é isso? Que seja, Julieta, que seja. Tenho tempo para conversar. Sempre tenho tempo para conversar com você…
– Julieta…
– Sim.
– Está fazendo o que aqui, ainda?
– Estou na minha casa.
– Pois esta é a minha casa.
– É minha, também.
– E se eu sair daqui? Eu vou, tudo bem? E aí você me deixa?
– Nunca vou te deixar. Você nunca vai me deixar te deixar, e nem pode.
– Por que eu não deixaria?
– Não consegue me deixar, menos ainda esquecer.
– Ah, consigo. Já esqueci ant…
– Eu sei. Você superou namoradas, amores, paixões que não deram certo, amigos que te esqueceram… E vê que foi até fácil. Não pareceu, no início, mas foi; só não pense que comigo também será. No momento que você morrer, eu estarei lá. Quando suspirar pela última vez, será para mim. Sou o seu futuro. As pessoas passam, mas eu fico; não há outra opção. Não escolhemos que fosse assim, mas é. Se você quiser fugir, eu terei de querer também, e teremos de fugir juntos. Não há escapatória.
– Você não me convence com seu discurso intenso.
– Sabe que convenci! Sabe que é verdade! Eu sei, eu conheço mais a você do que você mesmo.
– Impossível.
– É tanto possível quanto é verdade. Eu sou sua e você é meu, meu Romeu, ainda que isso faça com que você se esconda atrás dos móveis.
– Meu nome não é Romeu.
– E nem o meu é Julieta! E isso faz diferença?
Não. Não faz diferença. Sei que não, Julieta…
– Eu não posso ir embora. E você também não. Não faça as coisas serem mais difíceis do que são, como é do seu costume… Só aceite a minha presença.
Ficamos quietos, apenas olhando. Não sei que sentimento há entre nós. Eu não tenho muito tempo, e sei disso. Sei que é por isso que você apareceu assim que tudo começou a piorar; para me preparar, me ajudar. Mas eu quero aproveitar! Tão pouco tempo e tanta vida! Tanta felicidade, tanto sofrimento, a delícia de estar vivo… Com dores, mas vivo. Eu quero aproveitar. Eu quero aproveitar?
Em alguns minutos de silêncio, juntei a coragem que tanto me faltou.
– Eu quero me juntar a você. Eu vou me juntar a você, Julieta.
– Não, não posso te obrigar a isso. Não posso e nem quero. Eu espero. Viva a sua vida, eu espero.
– Para que esperar? Agora não faz mais diferença. Eu quero ver o mundo com você, é a única chance que tenho de vê-lo. Não pode ser agora?
– Isso é precipitado demais.
– Ah, agora é precipitado? Não!
– Poderemos ver o mundo, eu poderei, finalmente. Mas agora? Agora não falta tanto. Espere mais um pouco…
– Não! Nada vai mudar, Julieta, nada. Eu vou morrer, e isso é certo.
– Você não sabe quando.
– Mas você sabe. Não me faça sofrer mais do que preciso.
Ela sabe. Seus olhos e seus cabelos translúcidos sabem. E eu sei também, Julieta! Posso ver através de você.
Fui até o escritório, deixando-a sozinha. Ela me seguiu, como esperei que fizesse. Durante todo o tempo em que escrevi as cartas, Julieta as inspecionava por sobre meu ombro. – Não faça isso.
– Eu já me decidi.
– Não faça isso!
– Não faça isso, VOCÊ! Vamos, Julieta. Me ajude.
Ela me indicou o caminho até o banheiro, e pediu que eu enchesse a banheira.
– Tem certeza que é a melhor maneira?
– Não, nunca fiz isso antes. Não se preocupe, eu vou estar ao seu lado. Eu o ajudarei. A não ser que… que você não queira.
Fitei seus olhos espectrais, sem mágoa ou cinismo. Penso em todos os olhares que me formaram: orgulhoso e amável em meus pais, fraternalmente provocador em minha irmã, os olhos sorridentes dos meus amigos – tantos olhares significativos! E o seu olhar, Julieta, o último, que agora me acolhe na eternidade.